Créditos do Blog: Observar e Absorver
Via: Blog Infoworld
Flamarion Maués
Voltei de Buenos Aires recentemente. Estive na cidade por alguns dias e uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a forte polarização política que existe lá e em todo o país. De um lado, setores do governo, peronistas de diversos matizes, setores da esquerda e a maior parte da população mais pobre, que apoiam o governo da presidenta Cristina Fernandez de Kirchner. De outro, a oposição, composta por diversos partidos, inclusive setores do peronismo, pelos dirigentes do “campo” (agropecuária) e por quase toda a grande imprensa, capitaneada pelos jornais Clarín e La Nación, os dois maiores do país e donos de canais de TV e rádios. O nível de conflito político é alto, talvez maior do que o nosso nesse período já quase eleitoral, sendo que lá a eleição é só no ano que vem.
Uma das frentes mais radicalizadas nesta disputa é justamente a dos meios de comunicação. A presidenta Kirchner comprou a briga com os grandes grupos que monopolizam a mídia no país, e está batendo de frente com eles. Aprovou no Congresso a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, mais conhecida como “Ley de medios”, que só não entrou ainda em vigor porque os grandes grupos monopolistas e os setores políticos que os apoiam estão usando todos os recursos jurídicos possíveis para evitar que isso ocorra. Mas tudo indica que a lei, que fere de morte os privilégios que estes grupos têm hoje, controlando TVs (aberta e a cabo), rádios, jornais, internet etc., vai mesmo começar a vigorar ainda este ano. Com a nova lei, simplesmente não poderá mais haver grupos de sejam proprietários de todos estes meios ao mesmo tempo, nem em nível local e muito menos em nível nacional. No Brasil, por exemplo, seria uma lei que atingiria fortemente o poder da Globo.
Um dos elementos mais interessantes nesta batalha que vem sendo travada contra os grandes grupos que controlam a mídia é o programa televisivo “6,7,8”, exibido diariamente pela TV Pública (do governo federal). Trata-se de um programa dedicado, segundo seu apresentador, Luciano Galende, a fazer “uma resenha crítica dos meios de informação na Argentina”. O programa é muito bem feito, e bate pesado nos grandes jornais, rádios e TVs, desmascarando seus interesses, suas manipulações grosseiras e seu falso distanciamento ao noticiar e comentar os principais fatos políticos, sociais e econômicos. E bate de frente com os jornalistas que fazem o papel de porta-vozes desses interesses, principalmente aqueles articulistas que, do alto de uma pretensa “autoridade” jornalística ou profissional, se dedicam a defender os interesses do patrão, do grande capital, dos reacionários etc. Se compararmos ao Brasil, seriam as mírians leitão, os alis kamel, sardembergs, diogos mainardis e outros desse naipe.
O programa estreou a cerca de dois anos e vem aumentando sua audiência e repercussão, o que com certeza incomoda muita gente.
É um programa que a gente não está acostumado a ver no Brasil – e acho mesmo que em poucas partes do mundo haverá algo que se assemelhe a “6,7,8”. Não há meias palavras nem luva de pelica, a crítica é direta e aberta. Mas é uma crítica em geral bem feita, fundamentada, e quase sempre ilustrada com imagens ou textos que deixam aquele que é objeto da crítica em situação delicada, pois fica difícil negar certas coisas diante de evidências irrefutáveis.
Por exemplo, há poucos dias uma famosa apresentadora de TV, algo como uma Hebe Camargo argentina, confessou em seu programa que em 1977, durante a ditadura militar que matou pelo menos 15 mil argentinos, um sobrinha sua (e o marido da sobrinha) foi sequestrada pela repressão. Graças à sua intervenção junto a um general que conhecia, sua sobrinha foi solta, mas o marido continua desaparecido até hoje. No programa foram mostradas as imagens dessa mesma apresentadora, em 1978, durante o mundial de futebol na Argentina, afirmando que havia uma campanha orquestrada para “denegrir” o país no exterior, que na Argentina todos viviam bem e em liberdade. Ela foi uma das que apoiou a campanha da ditadura “nosotros argentinos somos derechos y humanos”, que visava desacreditar as denúncias de violações de direitos humanos que ali ocorriam naquele exato momento. Isso um ano após ela ter acionado o general amigo para livrar a sua sobrinha da tortura. Quer dizer, fica desmascarada a conivência, mais do que isso, o apoio dessa senhora à brutal repressão que houve no país. Ela sabia o que acontecia e apoiva o que era feito. Não há como ela negar isso. E o programa desnuda essa situação, com imagens que não podem ser desmentidas.
E desse mesmo modo vários outros temas são abordados. É impressionante a capacidade da produção do programa de achar imagens e textos em seus arquivos que desmontam as opiniões atuais de muitos dos comentaristas dos grandes meios de comunicação. Diante desses “desmentidos” feitos por sua própria voz e imagem, como reagir e negar a exatidão da crítica?
E, é claro, o programa elege seus amigos. Neste momento, Maradona é o maior desses amigos, por ter enfrentado a mídia e ter assumido posições políticas mais à esquerda e mais governistas.
O programa é montado de forma inteligente. Um apresentador, cinco debatedores fixos e dois convidados diferentes a cada dia. Esta bancada debate as matérias feitas pela produção, matérias sempre em tom forte, de denúncia e desmascaramento do que está sendo dito pelos grandes meios. Os debatedores são muito perspicazes, e os convidados quase sempre são muito simpáticos aos pontos de vista defendidos no programa.
Essa é uma das críticas que “6,7,8” recebe, a de não abrir espaço ao contraditório. É apenas em parte correta, pois para fazer a crítica da grande mídia o programa exibe o que a grande mídia diz. A diferença é que desmonta o que é dito, ao contrário do que estamos acostumados a ver, ou seja, tal comentarista fala um absurdo e fica por isso mesmo, não há debate ou contraditório. E quase todos os comentaristas da grande mídia dizem – por que será? – a mesma coisa, pensam do mesmo jeito. Com “6,7,8” o quadro muda. Estes comentaristas têm resposta, muitas vezes com base em coisas que ele mesmo disse em outros momentos. É claro que estes comentaristas não gostam nada disso, e acusam o programa de “constranger” sua liberdade de opinião, um argumento totalmente falacioso.
Outra crítica a “6,7,8”, esta mais consistente, é que se trata de um programa “oficialista”, ou seja, governista, pró-Kirchner. De fato é, e eles assumem isso, o que não deixa de ser uma postura pouco usual na TV, em qualquer parte. O programa não se assume exatamente como pró-governo, mas sim como a favor das principais linhas políticas que norteiam o governo, o que não significa concordar e aprovar tudo o que o oficialismo faz. Há críticas ao governo e aos seus membros, claro que não com a mesma intensidade que as feitas aos que estão do outro lado, mas o programa não é acrítico. E nem busca aquela postura, em geral falsa, do tipo “somos independentes e criticamos a todos da mesma maneira, estamos acima das diferenças entre os lados em disputa”.
Outra de suas características interessantes é que, vira e mexe, os debatedores do programa criticam as matérias feitas pela produção de “6,7,8”. Deve-se dizer que a produção – comandada por Diego Gvirtz – é mais oficialista que a bancada de debatedores, e por vezes tem a mão muito pesada em relação às críticas a certos jornalistas e comentaristas da oposição. E os debatedores do programa não deixam barato, criticam o seu próprio programa no ar, sem problemas.
Enfim, trata-se de uma experiência inovadora na TV, a começar pelo fato de se propor a fazer uma críticas dos meios de comunicação no veículo mais popular dentre todos eles, a TV, e não apenas aquela crítica mais teórica, mas sim a crítica direta, dando nome aos bois e usando as imagens dos outros canais de TV para fazer isso.
É certo que algumas das críticas feitas ao programa são corretas, mas sem dúvida é um espaço que oxigena a TV argentina, e sem dúvida está tendo repercussões importantes. Hoje, os jornalistas e comentaristas de todos os meios sabem que estão sob a lupa crítica de “6,7,8”, e que não podem sair falando coisas impunemente, haverá cobrança pelo que foi dito. Não se trata de censura, de nenhuma maneira, mas de debate público.
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